2012-07-15

Livro: A Estrada

Os melhores livros têm o poder de nos emocionar, de nos fazer sorrir, de nos transportar para dentro da história. Mas também têm o poder de nos fazer sentir atordoados, exaustos e miseráveis, sem que consigamos largar a leitura. Este é o caso do livro A Estrada, de Cormac McCarthy, publicado em 2006 e adaptado para o cinema em 2009, em uma excelente adaptação.

livro a estrada

Bem, verdade seja dita, o texto de McCarthy favorece a transposição de romance para roteiro, uma vez que ele usa muitos diálogos e as descrições de cenários e das ações dos personagens se parecem muito com linhas guias para um roteiro (provável influência do fato de que ele também escreve peças de teatro). Entretanto, assim como nosso falecido amado Saramago, McCarthy também parece não ser um grande fã de pontuação em seus textos (apesar de bem menos do que o autor português). Assim, os diálogos do livro não são marcados com pontuação e fluem direto da narração. Todavia, não é difícil distingui-los, e o estilo é até mais fácil de ser assimilado (e nos acostumarmos a ele) do que o estilo de Saramago.

A Estrada é um texto que, ao mesmo tempo em que é fácil de ler, que tem uma ótima fluência, tem um clima pesado, sacrificante, do ponto de vista emocional. Ele encerra dramas realmente profundos e situações limítrofes. Imagine, por exemplo, um pai instruir o filho de maneira clara e objetiva (e enervante para nós, leitores), como puxar o gatilho do revólver para ele se matar caso o plano do pai fracasse e sobreviventes comedores de carne humana o encontrasse.

Assim, apesar de se passar num futuro pós-apocalíptico, A Estrada é menos ficção científica do que um estudo de personagens em situações impossíveis, assim como o desmoronamento dos indivíduos diante de uma sociedade inexistente. Aliás, não dá pra chamar de ficção científica, uma vez que temos zero de ciência, focando apenas nos seres humanos restantes e nunca descrevendo o que realmente levou àquela situação (apesar de ser plausível supor que os personagens vivem o resultado de um inverno nuclear).

Forte, dramático, sufocante, melancólico. A Estrada é tudo isso e muito mais. É também um soco no estômago em forma de texto. Um soco que serve pra nos despertar da apatia e que deveríamos levar de tempos em tempos. Um livro que eu digo: você deveria ler. (E para quem não suporta longas leituras, ele é bem curto, com cerca de 240 páginas apenas.)

Sinopse oficial do livro:

Um pai e seu filho caminham solitários em um mundo pós-apocalíptico. Estão fracos, o inverno se aproxima, e o pai acha que a única chance de sobrevivência é seguirem pelas estradas remanescentes em direção à costa, apesar de não terem ideia do que irão encontrar ao chegar lá.

Eles não possuem praticamente nada. Apenas alguns cobertores puídos, um carrinho de compras com alimentos escassos e um revólver com poucas balas, para se defenderem dos violentos assassinos que vagam pelo mesmo caminho.

Mas A Estrada é muito mais do que um relato apocalíptico. É a profunda e comovente história de um pai e seu filho, "cada um o mundo inteiro do outro", e a jornada que empreendem em busca da salvação.

a estrada

Abaixo, alguns trechos e citações do livro A Estrada. Se não leu, nem viu o filme, pode conter spoilers (grifos meus):

O clima sombrio, soturno e desolador:

Quando ele acordava na floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzento do que o anterior. Como o início de um glaucoma frio que apagava progressivamente o mundo. Sua mão subia e descia de leve com cada preciosa respiração. Removeu a lona de plástico e se levantou em meio às roupas e cobertas fedorentas e olhou para o leste em busca de alguma luz, mas não havia nenhuma.

O tempo e como o marcamos:

Com a primeira luz cinzenta ele se levantou e deixou o menino dormindo e caminhou até a estrada e se agachou e estudou a região que ficava ao sul. Árida, silenciosa, sem deus. Ele achava que o mês era outubro, mas não tinha certeza. Fazia anos que não tinha um calendário. Estavam seguindo para o sul. Não haveria como sobreviver a mais um inverno ali.

Desespero e Deus:

Ele acordou antes da aurora e ficou vendo o dia cinzento raiar. Lento e meio opaco. Levantou-se enquanto o menino dormia e calçou os sapatos e envolto pelo cobertor caminhou através das árvores. Desceu para dentro de uma fenda na pedra e ali se agachou tossindo e tossiu durante um longo tempo. Depois ficou apenas ajoelhado nas cinzas. Ergueu o rosto para a manhã pálida. Você está aí? ele sussurrou. Vou te ver enfim? Você tem um pescoço que eu possa estrangular? Você tem um coração? Maldito seja eternamente você tem uma alma? Oh Deus, ele sussurrou. Oh Deus.

a estrada

Andando pelo inferno gelado e vazio, vendo a morte de perto, tentando esquecer e lembrar as coisas:

Atravessaram a cidade ao meio-dia do dia seguinte. O revólver estava à mão na lona dobrada por cima do carrinho. Mantinha o menino bem perto, ao seu lado. A cidade estava quase toda queimada. Nenhum sinal de vida. Carros na rua incrustada de cinzas, tudo coberto de cinza e poeira. Rastros fósseis na lama seca. Um cadáver na soleira de uma porta seco feito couro. Arreganhando os dentes para o dia. Ele puxou o menino mais para perto. Apenas se lembre que as coisas que você põe na cabeça ficam lá para sempre, você falou. Você talvez queira pensar sobre isso.
Você se esquece de algumas coisas, não se esquece?
Sim. Você se esquece do que quer lembrar e se lembra do que quer esquecer.

Sobre como a estrada reduz. O tempo, o homem, todas as questões:

Naqueles primeiros anos as estradas estavam povoadas por refugiados amortalhados em suas roupas. Usando máscaras de óculos de proteção, sentados em seus trapos na beira da estrada como aviadores arruinados. Seus carrinhos de mão com pilhas de quinquilharia. Arrastando carrinhos. Os olhos brilhando no crânio. Cascas incrédulas de homens cambaleando pelas estradas como migrantes numa terra febril. A fragilidade de todas as coisas finalmente revelada. Questões antigas e perturbadoras solucionadas para se transformar em nada e noite. A última instância de uma coisa leva a categoria consigo. Apaga a luz e vai embora. Olhe ao seu redor. Para sempre é muito tempo. Mas o menino sabia o que sabia. Que para sempre não é tempo algum.

Uma de muitas noites:

Eles se agacharam na estrada e comeram arroz frio e feijão frio que tinham cozinhado dias antes. Já começando a fermentar. Nenhum lugar para fazer uma fogueira onde não fossem ser vistos. Dormiram amontoados nas colchas malcheirosas no escuro e no frio. Ele abraçava o menino bem junto do corpo. Tão magro. Meu coração, ele disse. Meu coração. Mas sabia que se fosse um bom pai ainda assim poderia ser como ela disse. Que o menino era tudo o que havia entre ele e a morte.

a estrada

O tempo na estrada:

Nenhuma lista de coisas a fazer. O dia providencial a si mesmo. A hora. Não existe o mais tarde. Agora é mais tarde. Todas as coisas graciosas e belas como as que se levam guardadas no coração têm uma origem comum na dor. Nascem do pesar e das cinzas. Então, ele sussurrou para o menino adormecido. Tenho você.

Pensando na mulher e mãe, e um diálogo emocionalmente devastador:

Pensou na fotografia na estrada e achou que devia ter tentado mantê-la em suas vidas de algum modo mas não sabia como. Acordou tossindo e foi lá para fora de modo a não acordar o menino. Acompanhando um muro de pedra na escuridão, embrulhado no cobertor, ajoelhando-se nas cinzas como um penitente. Tossiu até conseguir sentir o gosto do sangue e disse o nome dela em voz alta. Pensou que talvez o tivesse dito enquanto dormia. Quando voltou o menino tinha acordado. Me desculpe, ele disse.
Tudo bem.
Vá dormir.
Eu queria estar com a mamãe.
Ele não respondeu. Sentou-se ao lado do vulto pequenino embrulhado nas colchas e nos cobertores. Depois de algum tempo ele disse: Você quer dizer que queria estar morto.
É.
Você não deve dizer isso.
Mas que queria.
Não diga isso. É uma coisa ruim de se dizer.
Não dá para evitar.
Eu sei. Mas tem que evitar.
Como é que eu faço isso?
Não sei.

Num flashback, a discussão entre o homem e a mulher, sobre o suicídio num mundo morto, a persistência do homem e do menino, e a eloquência mesmo em poucas palavras trocadas:

Não me importo. Não quer dizer nada. Pode pensar que eu sou uma puta infiel se quiser. Tenho um novo amante. Ele me dá o que você não consegue dar.
A morte não é um amante.
Ah é sim.

Por favor não faça isso.
Sinto muito.
Não consigo fazer isso sozinho.
Então não faça. Não posso te ajudar. Dizem que as mulheres sonham com o perigo daqueles que estão sob seus cuidados e os homens com seu próprio perigo. Mas eu não sonho com nada. Você diz que não consegue fazer isso sozinho? Então não faça. É tudo. Porque eu estou exausta deste meu coração libertino e isso já faz muito tempo. Você fala sobre tomar uma posição firme mas não há posição a tomar. Meu coração foi arrancado de mim na noite em que ele nasceu então não peça por um lamento agora. Não há nenhum. Talvez você venha a ser bom nisso. Eu duvido, mas quem sabe. A única coisa que eu posso te dizer é que você não vai sobreviver por conta própria. Eu sei porque eu nunca teria chegado tão longe. A uma pessoa que não tivesse ninguém seria aconselhável que se juntasse a algum fantasma passável. Trazê-lo à vida com seu sopro e persuadi-lo a seguir em frente com palavras de amor. Oferecer-lhe cada migalha fantasma e protegê-lo do perigo com seu corpo. Quanto a mim minha única esperança é o nada eterno e espero por ele com todo meu coração.
Ele não respondeu.
Você não tem nenhum argumento porque não existe um.
Você vai dizer adeus a ele?
Não. Não vou.

Só espere até de manhã. Por favor.
Tenho que ir.
Ela já tinha se levantado.
Pelo amor de Deus, mulher. O que eu digo a ele?
Não posso te ajudar.
Para onde você vai? Você não consegue nem mesmo enxergar.
Não preciso.
Ele se levantou. Estou te implorando, ele disse.
Não. Não vou. Não posso.

Ela se foi e a frieza do gesto foi seu último presente. Usaria uma lasca de obsidiana. Ele mesmo lhe ensinara. Mais afiado do que o aço. A ponta com a espessura de um átomo. E ela estava certa. Não havia argumento. A centena de noites em que eles tinham ficado sentados debatendo os prós e os contras da autodestruição com a honestidade de filósofos acorrentados à parede de um hospício. Pela manhã o menino não disse nada em absoluto, e quando eles tinham guardado suas coisas e estavam prontos para pôr o pé na estrada ele se virou e olhou para o local de seu acampamento lá atrás e disse: Ela foi embora não foi? E ele disse: Sim, foi.

a estrada

Acuados:

Rastejaram devagar por entre as folhas na direção do que parecia ser um terreno mais baixo. Ele ficou deitado escutando, abraçado ao menino. Podia ouvi-los na estrada falando. Voz de uma mulher. Depois ouviu-os nas folhas secas. Pegou a mão do menino e colocou o revólver nela. Pegue, ele sussurrou. Pegue. O menino estava aterrorizado. Colocou o braço em torno dele e o abraçou. O corpo tão magro. Não tenha medo, ele disse. Se eles te acharem você vai ter que fazer isso. Está entendendo? Shh. Não chore. Está me ouvindo? Você sabe como fazer. Coloca dentro da boca e aponta para cima. Faça rápido e com força. Está entendendo? Pare de chorar. Está entendendo?
Acho que sim.
Não. Está entendendo?
Estou.
Diga estou entendendo Papai.
Estou entendendo Papai.
Baixou os olhos para ele. Tudo o que viu foi terror. Tirou a arma dele. Não está não, ele disse.
Eu não sei o que fazer, Papai. Eu não sei o que fazer. Onde é que você vai estar?
Está tudo bem.
Eu não sei o que fazer.
Shh. Eu estou bem aqui. Não vou te deixar.
Promete.
Sim. Prometo. Eu ia correr. Tentar atrai-los para longe. Mas não posso te deixar.
Papai?
Shh. Fique abaixado.
Estou com tanto medo.
Shh.

Sonhos e lembranças:

Sonhos maravilhosos agora dos quais ele abominava despertar. Coisas já não mais conhecidas no mundo. O frio o impedia para a frente a fim de ajeitar a fogueira. Memória dela travessando o gramado na direção da casa cedo pela manhã numa leve camisola rosa que se colava aos seus seios. Ele achava que cada memória lembrada devia cometer algum ato de violência às suas origens. Como num jogo numa festa. Diga a palavra e passe adiante. Então seja moderado. O que você altera ao se recordar ainda mantém uma realidade, conhecida ou não.

Auto-imagem:

Caminharam pelas ruas envolvidos nos cobertores imundos. Ele levava o revólver na cintura e segurava o menino pela mão. No outro lado da cidade encontraram uma casa solitária num campo e atravessaram e entraram e caminharam pelos quartos. Depararam-se consigo num espelho e ele quase sacou o revólver. Somos nós, Papai, o menino sussurrou. Somos nós.

As lembranças do homem que não podem ser passadas para o filho, de um outro mundo:

Quando acordou novamente achou que a chuva tinha parado. Mas não foi isso que o acordou. Ele tinha sido visitado num sonho por criaturas de um tipo que nunca tinha visto antes. Não falavam. Ele achou que tinham estado agachadas ao lado do seu catre enquanto dormia e que tinham escapulido quando ele acordou. Virou-se e olhou para o menino. Talvez compreendesse pela primeira vez que, para o menino, ele próprio era um alienígena. Um ser de um planeta que já não existia. Cujas histórias eram suspeitas. Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que tinha perdido sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele. Tentou se lembrar do sonho mas não conseguiu. Tudo o que restava era a sensação. Pensou que talvez eles tivessem vindo avisá-lo. De quê? De que ele não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio. Mesmo agora alguma parte dele desejava que nunca tivessem encontrado aquele refúgio. Alguma parte dele desejava que tudo tivesse terminado.

a estrada

Ao encontrarem outro andarilho pela estrada, velho, maltrapilho e desgraçado, que pela pena do menino, eles acolhem momentaneamente:

Eu não sou nada. Posso ir embora se você quiser. Consigo encontrar a estrada.
Você não precisa ir embora.
Eu não vejo uma fogueira há muito tempo, isso é tudo. Vivo como um animal. Você não ia querer saber as coisas que comi. Quando vi esse menino pensei que tinha morrido.
Pensou que ele era um anjo?
Eu não sabia o que ele era. Nunca achei que fosse voltar a ver uma criança. Não sabia que isso ia acontecer.
E se eu disser que ele é um deus?

O velho sacudiu a cabeça. Já deixei tudo isso para trás. Faz anos. Onde os homens não podem viver deuses também não se sentem bem. Você vai ver. É melhor ficar sozinho. Então espero que não seja verdade o que você disse pois estar na estrada com o último deus seria uma coisa terrível então espero que não seja verdade. As coisas vão melhorar quando todos tiverem morrido.
Vão?
Claro que vão.
Melhorar para quem?
Todo mundo.
Todo mundo.
Claro. Todos nós estaremos melhor. Vamos respirar com mais facilidade.
É bom saber disso.
É sim. Quando todos tivermos morrido pelo menos não haverá ninguém aqui além da morte e seus dias estarão contados também. Ela vai estar aqui na estrada sem nada para fazer e sem ninguém a quem fazer. Ela vai dizer: Para onde foi todo mundo? e é assim que vai ser. O que há de errado com isso?

(Se alguém leu este post até aqui - apesar do aviso de spoiler -, já deve ter notado que o livro é cheio de questões filosóficas.)

Diálogo entre pai e filho, mostrando que a inocência do menino aos poucos se esvai naquele mundo brutal. E sobre histórias:

Passaram o dia ali, sentados em meio a caixas e engradados. Você tem que falar comigo, ele disse.
Estou falando.
Tem certeza?
Estou falando agora.
Quer que eu te conte uma história?
Não.
Por que não?
O menino olhou para ele e desviu o olhar.
Por que não?
Essas histórias não são verdadeiras.
Elas não têm que ser verdadeiras. São histórias.
É. Mas nas histórias estamos sempre ajudando as pessoas e nós não ajudamos as pessoas.

Por que você não me conta uma história?
Não quero.
Está bem.
Não tenho nenhuma história para contar.
Você podia me contar uma história sobre você mesmo.
Você já conhece todas as histórias sobre mim. Você estava lá.
Você tem histórias por dentro que eu não conheço.
Quer dizer como sonhos?
Como sonhos. Ou coisas em que você pensa.
É, mas as histórias deveriam ser felizes.
Elas não têm que ser.
Você sempre conta histórias felizes.
Você não tem nenhuma história feliz?
Elas são mais tipo vida real.
Mas as minhas histórias não são.
As suas histórias não são. Não.
O homem o observava. A vida real é bem ruim?
O que você acha?
Bem, acho que ainda estamos aqui. Um bocado de coisas ruins aconteceu mas ainda estamos aqui.
É.
Você não acha que isso seja tão bom.
Está bem para mim
.

Mesmo tendo lido já faz mais de dois meses, ao reler essas passagens pra fazer o post, me emocionei.

Um comentário:

Márcia de Albuquerque Alves disse...

Me deixou curiosa prá ler o livro. Muito interessante.